Reproduzo hoje artigo que escrevi para a Revista Dimensão, da Escola de Pais de Florianópolis:
Certa manhã, quando eu estava ainda no início de minha vida profissional, fui chamado ao telefone. Do outro lado da linha uma pessoa solicitava ajuda terapêutica para lidar com o luto de seu filho que acabara de falecer.
Num primeiro instante, a possibilidade e o desejo de aprender mais se confundiam com os temores advindos da responsabilidade de poder ajudar uma família que estava passando por uma experiência tão difícil e delicada, como a morte de um filho.
Pude perceber que os sentimentos evocados em mim naquele momento eram também um reflexo de como a sociedade lida com o tema da morte. Os temores, as angústias, os receios, os medos, a falta de respostas, a ausência de palavras, a busca de explicações, a sensação de impotência, todo este “arsenal de sentimentos” faria parte, a partir de então, de uma longa jornada de luto ao lado de meu cliente.
Para todos nós, a experiência da morte é vivenciada como um momento de grande sofrimento, em que vem à tona uma gama de sentimentos como incredulidade, espanto, raiva, tristeza, pesar, desconsolo, impotência, vazio interior, futilidade, ansiedade, desespero, indignação.
A perda de um ente querido modifica a estrutura familiar, e geralmente requer a reorganização do sistema como um todo. Portanto, é uma experiência que impõe desafios adaptativos para a família e cada um de seus membros individualmente. O luto, então, é visto como este período necessário, para recolocar em ordem a vida e reorganizar o sistema familiar.
Entretanto, tal reorganização não significa uma resolução, no sentido de aceitação completa e definitiva da perda, mas envolve a descoberta de maneiras de assimilá-la e seguir em frente com a vida.
Talvez, um dos aspectos mais difíceis para a família no tempo de luto seja a comunicação intra-familiar, ou seja, a possibilidade de compartilhar abertamente sobre a experiência da morte.
A dificuldade vem pelo fato de que a vivência familiar do luto, e a dor advinda desta vivência, muitas vezes acionam nos membros da família o desejo de proteger o outro membro de seu sofrimento, bem como proteger a si mesmo da ansiedade de ver o outro sofrer.
A “saída” para este dilema passa a ser o silêncio e a tentativa de ocultar as emoções e reações emocionais, evitando tocar no assunto da morte. Porém, os efeitos desta postura são contrários ao que se deseja, pois a comunicação familiar fica prejudicada, alimentando fantasias secretas, num ambiente em que todos sofrem em silêncio e escondidos.
O desafio então é buscar obter algum controle sobre suas próprias reações à ansiedade do outro, para abrir a possibilidade de se conversar sobre a morte e sobre a dor experimentada por cada um. Assim, neste sistema de relacionamento aberto, o indivíduo está livre para comunicar ao outro seus pensamentos internos, sentimentos, angústias e fantasias, possibilitando a construção de um ambiente propício a descobertas de novos caminhos para a reorganização familiar.
O processo de luto pode durar anos, durante os quais cada evento, estação, feriado e aniversário acionarão novamente a antiga sensação de perda. Enquanto este processo continua, a família vai se ajustando à ausência de seu membro morto. Os papéis e as tarefas são redistribuídos, novos relacionamentos são formados e as antigas alianças são transformadas.
Eventualmente, chega um momento em que a maioria das famílias consegue, de forma geral, assimilar sua perda, embora o luto nunca seja totalmente terminado. Sempre haverá eventos que evocam lembranças da pessoa perdida, mas, com o tempo e a cicatrização, a dor se torna menos crua e intensa, liberando energia para outros relacionamentos e possibilitando a re-incorporação da pessoa que morreu sob uma nova perspectiva na história familiar. Afinal, quando um membro da família morre, o relacionamento com esse membro não morre, nem tampouco a sua história.
Lidar com a morte e o luto envolve um processo, sem fórmulas mágicas e prontas. Cada experiência de perda é única, assim como são únicos os passos e desafios necessários para a elaboração de cada uma destas experiências. É uma jornada caracterizada por uma complexidade emocional e relacional, que nos remete à finitude da existência humana, e nos convida a posicionar a morte como parte inexorável da vida.
Bibliografia
BOWEN, Murray. A reação da família à morte. In WALSH, Froma. & MC. GOLDRICK, Monica. Morte na família: sobrevivendo às perdas. Porto Alegre: ArtMed, 1998.
WHITE, Michael. “Saying hullo again: the incorporation of the lost relationship in the resolution of grief”. In Selected Papers. Adelaide, Australia: Dulwich Centre Publications, 1988.
Certa manhã, quando eu estava ainda no início de minha vida profissional, fui chamado ao telefone. Do outro lado da linha uma pessoa solicitava ajuda terapêutica para lidar com o luto de seu filho que acabara de falecer.
Num primeiro instante, a possibilidade e o desejo de aprender mais se confundiam com os temores advindos da responsabilidade de poder ajudar uma família que estava passando por uma experiência tão difícil e delicada, como a morte de um filho.
Pude perceber que os sentimentos evocados em mim naquele momento eram também um reflexo de como a sociedade lida com o tema da morte. Os temores, as angústias, os receios, os medos, a falta de respostas, a ausência de palavras, a busca de explicações, a sensação de impotência, todo este “arsenal de sentimentos” faria parte, a partir de então, de uma longa jornada de luto ao lado de meu cliente.
Para todos nós, a experiência da morte é vivenciada como um momento de grande sofrimento, em que vem à tona uma gama de sentimentos como incredulidade, espanto, raiva, tristeza, pesar, desconsolo, impotência, vazio interior, futilidade, ansiedade, desespero, indignação.
A perda de um ente querido modifica a estrutura familiar, e geralmente requer a reorganização do sistema como um todo. Portanto, é uma experiência que impõe desafios adaptativos para a família e cada um de seus membros individualmente. O luto, então, é visto como este período necessário, para recolocar em ordem a vida e reorganizar o sistema familiar.
Entretanto, tal reorganização não significa uma resolução, no sentido de aceitação completa e definitiva da perda, mas envolve a descoberta de maneiras de assimilá-la e seguir em frente com a vida.
Talvez, um dos aspectos mais difíceis para a família no tempo de luto seja a comunicação intra-familiar, ou seja, a possibilidade de compartilhar abertamente sobre a experiência da morte.
A dificuldade vem pelo fato de que a vivência familiar do luto, e a dor advinda desta vivência, muitas vezes acionam nos membros da família o desejo de proteger o outro membro de seu sofrimento, bem como proteger a si mesmo da ansiedade de ver o outro sofrer.
A “saída” para este dilema passa a ser o silêncio e a tentativa de ocultar as emoções e reações emocionais, evitando tocar no assunto da morte. Porém, os efeitos desta postura são contrários ao que se deseja, pois a comunicação familiar fica prejudicada, alimentando fantasias secretas, num ambiente em que todos sofrem em silêncio e escondidos.
O desafio então é buscar obter algum controle sobre suas próprias reações à ansiedade do outro, para abrir a possibilidade de se conversar sobre a morte e sobre a dor experimentada por cada um. Assim, neste sistema de relacionamento aberto, o indivíduo está livre para comunicar ao outro seus pensamentos internos, sentimentos, angústias e fantasias, possibilitando a construção de um ambiente propício a descobertas de novos caminhos para a reorganização familiar.
O processo de luto pode durar anos, durante os quais cada evento, estação, feriado e aniversário acionarão novamente a antiga sensação de perda. Enquanto este processo continua, a família vai se ajustando à ausência de seu membro morto. Os papéis e as tarefas são redistribuídos, novos relacionamentos são formados e as antigas alianças são transformadas.
Eventualmente, chega um momento em que a maioria das famílias consegue, de forma geral, assimilar sua perda, embora o luto nunca seja totalmente terminado. Sempre haverá eventos que evocam lembranças da pessoa perdida, mas, com o tempo e a cicatrização, a dor se torna menos crua e intensa, liberando energia para outros relacionamentos e possibilitando a re-incorporação da pessoa que morreu sob uma nova perspectiva na história familiar. Afinal, quando um membro da família morre, o relacionamento com esse membro não morre, nem tampouco a sua história.
Lidar com a morte e o luto envolve um processo, sem fórmulas mágicas e prontas. Cada experiência de perda é única, assim como são únicos os passos e desafios necessários para a elaboração de cada uma destas experiências. É uma jornada caracterizada por uma complexidade emocional e relacional, que nos remete à finitude da existência humana, e nos convida a posicionar a morte como parte inexorável da vida.
Bibliografia
BOWEN, Murray. A reação da família à morte. In WALSH, Froma. & MC. GOLDRICK, Monica. Morte na família: sobrevivendo às perdas. Porto Alegre: ArtMed, 1998.
WHITE, Michael. “Saying hullo again: the incorporation of the lost relationship in the resolution of grief”. In Selected Papers. Adelaide, Australia: Dulwich Centre Publications, 1988.
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